Ao longo da última década, a internet passou a hospedar um
conjunto de práticas “confessionais”. Milhões de usuários do mundo inteiro se
apropriam de diversas ferramentas disponíveis on-line e as utilizam para exibir
sua intimidade. Dia após dia, com a velocidade do tempo real, tanto os detalhes
mais saborosos como os mais inócuos de sua vida são expostos nas telas
interconectadas da rede global de computadores. Assim, os assuntos mais íntimos
de qualquer um se derramam em blogs ou em sites como YouTube, Twitter e
Facebook.
Trata-se de um verdadeiro festival da vida privada: imagens
e relatos que se oferecem sem pudor algum diante dos olhares sedentos de todos
aqueles que desejarem dar “uma olhada”. A tendência é bem atual e, de fato,
excede as margens da web para inundar todos os meios de comunicação. Basta
pensar no sucesso dos reality shows e dos programas de TV que ventilam toda
sorte de dramas pessoais, ou no sucesso de vendas das revistas de celebridades
e mesmo das biografias, tanto no mercado editorial como no cinema.
A nossa ideia de intimidade está mudando. Esse termo
costumava aludir àqueles âmbitos da existência que se conheciam, de maneira
inequívoca, como “privados”. Uma definição que, até bem pouco tempo, parecia
tão óbvia e sem fissuras. No entanto, é cada vez mais evidente que alguma coisa
mudou, e que são inúmeras as repercussões dessa transformação. Essas mudanças
não são fruto exclusivo dos avanços tecnológicos que hoje nos permitem realizar
façanhas antes impensáveis, mas resultam também – e, talvez, sobretudo – de
certas redefinições no que tange aos nossos valores e crenças, além de
contemplar múltiplos fatores de ordem sociocultural, política e econômica.
Em virtude de todos esses abalos, cujos efeitos foram se
consolidando por toda parte nos últimos anos, em vez de se apresentar como o
reino do segredo e do pudor, hoje o espaço íntimo se converte numa espécie de
cenário onde cada um deve montar o espetáculo de sua própria personalidade.
Junto com essas redefinições, alargam-se compulsivamente os limites do que se
pode dizer e mostrar. Seja com receio ou com prazer, mas quase sempre com certo
espanto, hoje vemos como a velha esfera da privacidade se exacerba sob a luz de
uma visibilidade que se deseja total.
Dentre outros motivos, isso se dá porque essa visibilidade
promete nos conceder a tão prezada celebridade. E, por si mesmas, essas condições
parecem capazes de legitimar a existência daqueles que conseguem conquistá-las:
ser visto e ser famoso equivale, cada vez mais, a ser alguém. Mesmo que não
exista motivo algum para estar à vista de todos, e embora essa celebridade não
tenha nenhum sentido exterior a ela própria.
Pois já não é mais necessário ter feito algo extraordinário
para ter acesso ao cobiçado pódio da fama, nem sequer dispor de alguma
qualidade peculiar ou algum conhecimento valioso. Hoje, praticamente todos
temos à nossa disposição um arsenal de técnicas para estilizar a personalidade
e as experiências vitais. Além de aplicar esses recursos cotidianamente, para
aprimorar a própria imagem, é preciso projetar de forma adequada os resultados
dessa auto-estetização, a fim de nos posicionarmos do melhor modo possível no
competitivo mercado das aparências e atrair os olhares alheios. As receitas
mais eficazes para obter sucesso nessa espetacularização de si provêm dos
moldes narrativos e estéticos que aprendemos ao longo das últimas décadas,
tanto no cinema como assistindo televisão e consumindo publicidade, e que agora
se recriam e desdobram nos novos gêneros interativos da web.
A noção de intimidade não é a única que se esvanece nesse
turbilhão de mudanças. Perdem nitidez, também, as fronteiras que costumavam dividir
aqueles dois tipos de espaços onde transcorria a existência moderna: a esfera
pública e o âmbito privado. As paredes que os separavam, e que eram sólidas e
opacas, desempenhavam papel fundamental na elaboração do eu moderno.
Por isso aumentou tanto a quantidade de pessoas que recorrem
à internet para experimentar, ensaiar e brincar, testando novas formas de ser
alguém – e se relacionar. Nos jogos que se desenvolvem nesses reluzentes
cenários virtuais surgem estilos cada vez mais distantes do paradigma moderno
do “homem sentimental”, por exemplo.
Tudo ocorre como se estivesse se deslocando, paulatinamente,
o eixo em torno do qual cada sujeito elabora seu eu. Nascem, assim, entre nós,
subjetividades bem menos concentradas na “vida interior” e mais voltadas para o
campo do visível. Esses novos sujeitos, tão contemporâneos, creem que devem ser
capazes de mostrar o que eles são na própria pele e na luz das telas.
Graças aos recursos oferecidos pela web e outros meios de
comunicação que se tornam cada vez mais audiovisuais e interativos, as novas
construções pessoais podem ser exibidas nas telas globais. E é desse modo que
este novo tipo de eu se realiza. Porque em nossa sociedade do espetáculo só é
aquilo que se vê, e por isso é necessário aparecer para que os olhares alheios
confirmem a própria existência. Trata-se daquilo que se espera de nós: é o
nosso modo de ser contemporâneo. Vazio, em busca constante de aprovação do
externo. Esquecendo totalmente do eu interior.
Verdadeiro demais! Amei a reflexão.
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